O Brasil alcançou, em outubro de 2021, a marca de 71% (setenta e um por cento) da sua população endividada, ou seja, quase três em quatro brasileiros têm sua renda comprometida em decorrência de dívidas. Alguns meses antes, mais precisamente em 1º de julho de 2021, foi sancionada, pelo presidente Jair Bolsonaro, a Lei n.º 14.181/21, também conhecida como Lei do Superendividamento, a qual alterou a redação de artigos do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990) e do Estatuto do Idoso (Lei n.º10.741/2003).
O que é pessoa “superendividada”?
Primeiramente, devemos entender o que o legislador entende por pessoa “superendividada”. Entende-se que o indivíduo considerado superendividado é aquele que contraiu de boa-fé débitos vultosos, com um ou mais credores, de forma que a quitação compromete o sustento de sua pessoa e de seus familiares, levando-os a um estágio de miséria.
Lei do Superendividamento: principais pontos
Com o objetivo de contornar essa situação, a Lei do Superendividamento traz um vasto conjunto de ferramentas jurídicas para que os consumidores endividados possam contornar a situação por meio da repactuação das dívidas, ao mesmo tempo em que honram seus compromissos financeiros, mantendo o bom equilíbrio entre as duas pontas do mercado.
O primeiro dos pontos notáveis da lei é o leque de dívidas que ela engloba. O consumidor superendividado pode renegociar diversos compromissos, desde boletos até empréstimos e, igualmente, taxas de companhias de fornecimento de serviços, como água e energia, também foram incluídas.
Acertadamente, o legislador manteve fora dessa lista débitos como pensões alimentícias e dívidas contraídas na compra de artigos de luxo, com o intuito de diminuir a possibilidade de “calotes” por pessoas de má-fé. Inclusive, sobre esse ponto, destaca-se que o legislador faz questão de frisar, no art. 54-A, §1º, da Lei n.º 14.181/2021, que apenas dívidas contraídas de boa-fé, ou seja, sem o propósito de lesar os fornecedores/comerciantes, serão objeto da lei.
Conforme já exposto, a lei foca na renegociação de dívidas para que o consumidor possa saldá-las. Relativamente ao tema, entre as novidades trazidas, está a negociação em “atacado” ou em “bloco”, que significa a possibilidade de negociar com todos os credores ao mesmo tempo.
Considerações sobre o art. 104-A
Observando-se o disposto no art. 104-A, o devedor apresentará, na mesma audiência em que estejam presentes todos os representantes de credores atendidos pela lei, proposta de pagamento do valor total dos créditos; assim, no processo, haverá mais agilidade quanto ao pagamento e maior previsibilidade ao devedor, que saberá, antecipadamente, a parcela da sua renda destinada a quitar o débito.
No que se refere ao procedimento da audiência de conciliação, caso este não dê o resultado esperado, os credores terão prazo de 15 (quinze) dias para apresentarem suas contestações ao plano de pagamento. Depois disso, o magistrado nomeará administrador que apresentará, no prazo de 30 (trinta) dias, um plano de pagamento com as devidas alterações para adequá-lo à lei, ressaltando-se que este plano será obrigatório.
Ainda sobre o artigo mencionado, é importante ter atenção ao prazo para a quitação integral das dívidas, que não deverá ultrapassar o prazo de 5 (cinco) anos, o que se mostra razoável, pois se, por um lado, permite um respiro ao devedor, por outro, impede que a divida se estenda a perder de vista, o que prejudicaria o credor.
Seguidamente, constata-se, no parágrafo 2º, do art.104-A, da Lei de Superendividamento, outra proteção ao consumidor e ao processo, contra os credores que tentem dificultar a renegociação.
Os credores que não comparecerem à audiência sem apresentar motivo pertinente terão suspensa a exigibilidade de seu crédito e não poderão incluir juros moratórios no valor principal, além de serem rigorosamente obrigados ao plano de pagamento do devedor.
Direitos e obrigações dos devedores
A respeito das tentativas do credor de retardar ou dificultar os direitos dos devedores, a Lei de Superendividamento citada cuidou de prevenir tratamentos desleais a eles. Tais condutas estão dispostas no art. 54-G, nos seus incisos seguintes, e entre elas está a de recusar o acesso do devedor a documentos essenciais de contrato que tenha sido firmado entre as partes.
Além disso, também merecem ser apontadas as obrigações dos devedores. A instauração do processo de repactuação é de iniciativa do próprio devedor, que deverá apresentar plano de pagamento completo, especificando todos os valores devidos, o valor das parcelas com as quais consiga arcar e o valor do “mínimo existencial”, isto é, a quantia necessária para que possa levar uma vida digna, com a satisfação de suas necessidades básicas.
Após a homologação do plano, haverá sentença registrada pelo juiz, na qual constarão informações, como data para a retirada do devedor do cadastro de inadimplentes e compromisso firmado por ele em adotar postura de cautela, para que ele aja no sentido de não aprofundar a situação de degradação financeira.
É relevante salientar que o pedido de renegociação não acarreta a declaração de insolvência civil do devedor, que se trata de outro instituto do Direito Civil, com regramento próprio, e uma nova renegociação somente poderá ser efetuada após 2 (dois) anos, contados da data final da liquidação das dívidas pactuadas no primeiro plano.
Ainda na linha de proteção ao devedor, a lei traz um conceito de “crédito consciente”, inspirado no art. 6º do Código de Defesa do Consumidor. Na prática, significa que as instituições financeiras, ao concederem créditos ao consumidor, devem especificar os detalhes do contrato.
Dados como valor do produto, número de prestações, juros incidentes e informações correlatas devem constar de forma integral e em linguagem clara, para que o consumidor saiba exatamente o que está contratando.
Lei de Superendividamento: Impactos no crédito
Paralelamente, as instituições ficam proibidas de prometer créditos para pessoas “negativadas” sem prévia consulta ao banco de dados de inadimplentes, visando à proteção ao consumidor para que ele não contraia número ainda maior de débitos.
As empresas também deverão ter cuidado no momento da oferta de crédito, já que o assédio constante e a pressão exercida sobre idosos, analfabetos e outras pessoas vulneráveis podem resultar em reparação por danos morais e materiais, decote de juros e encargos do valor principal do débito, entre outras sanções.
Impactos na gestão de cobrança
Em síntese, o que se observa da nova lei é uma preocupação do legislador, que recai em dois pontos: impedir o endividamento massivo da população brasileira e permitir a quitação integral desses débitos, evitando prejuízos para fabricantes/comerciantes e consumidores.
A inovação fica por conta da possibilidade de renegociação dos débitos em juízo, em um procedimento que muito se assemelha ao processo de recuperação judicial exclusivo para empresas, já que permite ao devedor comprometer-se a pagar sua dívida sem prejudicar sua sobrevivência. Por sua vez, a Lei de Superendividamento apresenta pontos positivos para as empresas que terão, em tese, um método mais célere para cobranças de dívidas, inclusive com a tentativa de conciliação entre as partes.
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